sábado, 25 de agosto de 2018

IMPUNIDADE E FALTA DE INDENIZAÇÕES MARCAM 1 ANO DO NAUFRÁGIO DA CAVALO MARINHO I

Vinte e quatro de agosto de 2017. Há exatamente um ano, o destino de 116 passageiros e quatro tripulantes da embarcação Cavalo Marinho I ficaria marcado para sempre. A maior tragédia da história da travessia marítima Mar Grande-Salvador afetou não só as 19 pessoas que jamais retornaram às suas casas, mas também seus familiares e os sobreviventes, que convivem com a dor da perda e o trauma do naufrágio.

Foram 365 dias de saudade, 525.600 minutos de luta por reparação, 31.536.000 segundos tentando voltar à rotina e seguir o fluxo. É o que faz a vendedora Josiene Ramos de Souza, 45 anos, uma das sobreviventes do naufrágio. Ela retomou a venda de bijuterias em Mar Grande e ainda utiliza a travessia para comprar material em Salvador, embora as viagens quinzenais tenham se transformado em mensais, principalmente em períodos chuvosos. Os detalhes daquele dia estão guardados na memória nos mínimos detalhes.

“Era uma viagem normal. A lancha estava balançando, mas eu já peguei temporal pior do que aquele. Começou a chover e eu levantei, porque ia visitar meu filho e não queria me molhar. Em uma questão de segundos, uma mulher gritou 'vai virar' e ela (a lancha) foi para o fundo. Quando eu mergulhei, um rapaz me puxou pelo braço e disse para eu segurar num bote salva-vidas, que foi a salvação de muita gente. Fiquei lá por duas horas, até o resgate chegar e me levar de volta a Mar Grande”, conta.

Foi no retorno ao Terminal de Vera Cruz que Josiene percebeu a grandeza do acidente. O local estava lotado de moradores de todas as partes da Ilha de Itaparica, que ansiavam por notícias de parentes, vizinhos e amigos. E mesmo aqueles que não conheciam ninguém, torciam por um final digno de filme de ação, quando as pessoas de bem saem ilesas. A chegada dos primeiros resgatados fez florescer a esperança de quem nada podia fazer, apenas aguardar.

“Eu tive dois momentos de desespero. O primeiro foi quando me lembrei do tubarão, e o outro quando cheguei aqui e vi aquele povo todo. Ouvi as pessoas gritando meu nome, mas passei direto e fui para a igreja. Agradeci a Deus e pedi que Ele confortasse as famílias dos que se foram. Depois dei meu depoimento na delegacia, onde meu marido e minha irmã me acharam e me levaram para a UPA”, ressalta Josiene.

Boas e más notícias

Quando a dona de casa Denise Vieira acordou naquela manhã, o filho Deisivan, na época com 22 anos, já havia saído para trabalhar. Na rotina rigorosa de um marinheiro, o horário e o trajeto percorrido para chegar até a Bahia Marina, na avenida Contorno, não mudavam muito. Por isso, quando ela viu na TV que algo errado tinha acontecido com a Cavalo Marinho I, teve a certeza de que o filho estava entre os passageiros.

Mas a tormenta inicial deu lugar à calmaria. “Eu me recordo como agora. Tinha terminado de acordar e, habitualmente, Deisivan pegava aquela lancha no mesmo horário. Quando eu liguei a televisão e vi a lancha, meu coração só dizia que ele estava lá. Saí desesperada, fui para a casa de minha mãe, e lá o povo ficou tentando me acalmar. Mas eu tinha certeza. Foi então que meu celular tocou e uma vizinha disse que ele estava na casa dela. Ele chorava muito e disse que nasceu de novo. Quando chegou lá, ajoelhou e agradeceu a Deus”, relembra ela.

Assim como Deisivan, o primo de Denise conseguiu sobreviver ao acidente. Mas a dona de casa também conhecia outras famílias que, ao contrário dela, não receberam boas notícias. “A ilha parou. A comunidade inteira se concentrou no atracadouro - onde estavam o carro dos bombeiros e as ambulâncias do Samu - e também na UPA, para procurar seus parentes. Mas alguns tiveram a notícia de que seus entes queridos não resistiram e foram embora. Uma vizinha perdeu a irmã e o sobrinho”, completa Denise.

Indenizações e caminhada

Na manhã desta sexta-feira, 24, parentes das vítimas e sobreviventes realizam uma caminhada entre o Fórum de Itaparica, na Estrada da Gamboa, e o Terminal de Vera Cruz. O objetivo é cobrar a maior fiscalização do sistema de transporte marítimo – já que os moradores dependem das lanchas para estudar, trabalhar e resolver questões pessoais em Salvador – e, principalmente, a resposta dos 46 processos já em tramitação, movidos contra a empresa CL Empreendimentos Ltda, responsável pela Cavalo Marinho I.

A empresa foi alvo de uma ação ajuizada pela Defensoria Pública do Estado (DPE), em setembro do ano passado, com o objetivo de garantir o pagamento das indenizações em favor das vítimas e dos familiares. Na época, foi pedido o bloqueio dos bens e de 20% da renda líquida da venda de bilhetes do transporte, além do depósito deste valor em uma conta judicial. A ação foi acolhida pelo Poder Judiciário, que concedeu liminar para bloquear os bens e 5% da renda líquida.

Entretanto, o proprietário da CL Empreendimentos, Lívio Garcia Galvão, alegou que não possuía bens e apresentou balancete que não comprovava os lucros, como se toda a verba que entrasse na empresa fosse usada para pagar os custos do serviço prestado. Somente na última terça, 21, após a Defensoria identificar, na Junta Comercial, que Lívio era sócio de outras três empresas, o juiz Maurício Lima de Oliveira determinou a penhora das cotas sociais do empresário na Ala Comércio de Combustível Ltda, Ala Assessoria e Consultoria Administrativa Ltda e LG Locação de Equipamentos Eireli.

O objetivo da penhora é assegurar pelo menos uma parte do dinheiro que deve ser pago em indenizações. Até o momento, a Defensoria Pública presta assistência a 63 sobreviventes e familiares de vítimas, sendo 58 em Vera Cruz e cinco em Salvador. Além das 46 pessoas que já estão com ações na Justiça, as outras 17 ainda dependem de documentos para dar entrada nos processos.

Em março deste ano, quando Lívio Galvão havia informado a ausência de bens, a Defensoria incluiu a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba) entre os réus dos processos, com pedido de indenização para as vítimas. Segundo a DPE, a Agerba também seria responsável – juntamente com a Marinha – pela fiscalização das empresas que realizam a travessia.

O diretor executivo da Agência, Eduardo Pessoa, rebate a acusação e afirma que a segurança naval e a vistoria das embarcações são atribuições da Marinha do Brasil. “Não é papel da Agerba fiscalizar a questão naval. A Agerba fiscaliza cumprimento de horários, qualidade dos terminais, limpeza de embarcações. Nós olhamos os terminais hidroviários e estabelecemos tarifas. Esta é a nossa obrigação e determinação legal. Nada teve que mudar porque o serviço sempre operou daquela forma. O serviço existe há mais de 60 anos e, pela primeira vez, teve um acidente”.

A Marinha, por sua vez, foi a responsável pelo inquérito apresentado no dia 23 de janeiro, que destacava a ‘negligência’ e ‘imprudência’ como as principais causas do naufrágio. Com 1,2 mil páginas e reunindo 50 interrogatórios, o inquérito apontava que os possíveis culpados pela tragédia são, além de Lívio Galvão, o engenheiro responsável técnico pela embarcação – ambos por negligência – e o comandante da lancha, por imprudência.

Após ser apresentado pelo comandante do 2º Distrito Naval, o vice-Almirante Almir Garnier Santos, e o Capitão dos Portos Leonardo Reis, o inquérito foi enviado para o julgamento do Tribunal Marítimo, no Rio de Janeiro.

Ao Portal A TARDE, o Tribunal informou que “o processo nº 32.241/2018 encontra-se atualmente na fase de vista à Procuradoria Especial da Marinha (PEM) que, atuando como fiscal da lei, poderá representar em face de quem entender ter dado causa ao acidente da navegação”.

Nesta fase do processo, as partes envolvidas ainda podem se defender e se manifestar sobre as provas colhidas no inquérito. Com base nisto, ainda não há um prazo definido para a divulgação do resultado do julgamento.

Ministério Público

A operação das lanchas que realizam a travessia marítima já é objeto de apurações do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) desde 2006. Segundo o órgão, em 2007 e 2014, a promotora de Justiça Joseane Suzart, titular da 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor de Salvador, ajuizou ações civis públicas para apurar o fucionamento do serviço.

Precariedade, inadequação, insegurança e os valores cobrados pelo transporte são algumas das questões analisadas pelo MP-BA. Somente em 2007, foram quatro ações civis públicas contra as empresas Transportes e Agência Marítima GIL, Flipper Transportes e Serviços Marítimos e os empresários Antônio Garrido Teixeira Poceiro e Antenor Neto do Nascimento, proprietários das embarcações, que operavam de forma clandestina, sem a chancela da Agerba.

19 Este é o número de mortos na tragédia com a embarcação Cavalo Marinho I, que ocorreu no dia 24 de agosto de 2017. “Nas ações, a promotora de Justiça alertou sobre as inúmeras irregularidades no transporte de passageiros pelas embarcações, que colocavam em risco, diariamente, a segurança e a saúde de centenas de pessoas”, ressalta o MP-BA em nota. Em 2014, uma nova ação solicitava a reforma dos terminais e das embarcações, a renovação dos coletes salva-vidas e outras medidas que assegurassem a saúde e segurança dos usuários.

Cinco dias após a tragédia, no dia 29 de agosto do ano passado, o Ministério Público solicitou a suspensão do serviço com urgência e ajuizou uma nova ação civil pública, em 4 de outubro, requerendo a cassação do serviço prestado pelas empresas que realizam a travessia, e que ainda se encontra na Justiça. Atualmente, a Promotoria de Justiça aguarda a conclusão do inquérito policial e envio para o Ministério Público.

Enquanto isto, sobreviventes como Josiene aguardam pelas indenizações. Mesmo com a certeza de que o dinheiro não vai reparar o trauma vivido naquele 24 de agosto de 2017, estas pessoas seguem em busca dos seus direitos, para este filme da vida real tenha ao mesmo uma pitada de ficção, com um final feliz. (As informações do A TARDE)

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